domingo, 13 de setembro de 2015

Velas para vê-la

Velasco vendia velas. Partia de Manaus em seu batelão singrando a bacia amazônica, até alcançar a foz do Juruá. Depois cortava aqui, atalhava ali por rios largos e acolá por estreitosaté os cafundós do Envira, em carga plena e água rés ao costado. Vinha tenteando os barrancos com as peças de cera. O ultimo vilarejo já era quase terras peruanas. 
Em cada empreitada gastava três, quatro meses. Nunca adoeceu; nunca se acidentou. Aprendeu o oficio com o pai que costumava dizer que aquelas águas guardavam os perigosos Pium e Candiru. Conheceu toda a ciência da floresta pela convivência com ele, admirador de Euclides da Cunha, que geografou todos aqueles rios e barrancos e também as expedições de Rondon e a historia da telegrafia. 
No verão, entretanto, Velasco retornava a Manaus, por conta da seca dos rios.
O comércio das velas - por vezes trocava por guaraná, balata ou comida - estava ameaçado pela eletricidade. Ele vociferava sobre a luz elétrica, que acabara de chegar a Manaus. Dizia que apagava a sombra do amor brandido entre quatro paredes e ainda tinha o risco de choque. O discurso midiático era para continuar aquele comércio, mantendo a tradição do pai, comandante do famoso Alaíde. As que mais vendiam eram as perfumadas que mandava buscar na feira do Ver-o-Peso, em Belém. Tal como bom vendedor não lhe faltava verbo e galanteios às mulheres que tinham o mocotó roliço. Era pra elas que guardava as aromáticas.
Sempre que tinha oportunidade laçava uma nativa e, com toda a lábia, deixava assombro aos pensamentos dos maridos quando saiam para pescar e caçar. Também levava na proa a lenda do Boto para prevenir as que surgissem buchudas. Já saiu muitas vezes pelas portas do fundo por conta de marido irado.
Mas num barranco, Feijó rio abaixo, próximo ao paralelo 10, morava uma morena cor-de-jambo, que havia acabado de perder o marido por conta de uma ferroada de Candiru. Inflamou, supurou e quando deram conta de subir pra Manaus, o membro estava podre e só restava a amputação, às pressas. Mesmo assim, a infecção já tinha corrido pelo sangue e parado nos pulmões, alcançando a morte.
Velasco soube dessa história ao vender velas para velarem o morto. Lá estavam apenas a viúva, dois bacuris pequenos – um de colo – e três vizinhos em posição de condolência. Enterraram-no no fundo do terreno, próximo à cacimba.
De soslaio, ele percebia naquela cabocla de luto um incenso especial que exalava o perfume dos sândalos.
Até que esperou o dia seguinte, boca da noite, para voltar, aportar e enxugar as lágrimas da viúva. Naquela noite trouxera uma vela que exalava o aroma da priprioca. Amou até o último fumego do pavio. Prometeu jamais voltar a vê-la.
N’outro dia apareceu com uma sete-dias-sete-noites, que liberava patchouli; amou até o último facho de luz jurando, desta vez, desaparecer em definitivo.
No terceiro ressurgiu com uma de metro, em castiçal de meio metro, vaporizando alecrimQuando saiu da tapera, a luz da lua, para apanhar água da cacimba pro asseio pós-coito, olhou pra trás e viu que a chama nunca mais se apagou e a fragrância de todas as velas havia se unificado naquela coitada.

Era início de verão e por lá se embrenhou. Até hoje Velasco vive de mãos dadas com o tempo derretido ao pé de cada vela balsamada.

Labareda, do bando de Corisco

2 comentários:

Abel Sidney disse...

Divulguei assim:

"Para os corações fortes, que não tem medo de vela, mortos e assombração!

Está avisado!!!"

Vão se assombrar, sim, mas é com a beleza das linhas bem traçadas, como o roteiro do batelão do Velasco no inverno amazônico - rio cheio, tão cheio como está o peito deste moço acriano-paraense-amapaense, que está sempre a nos brindar com estes escritos que incitam a vela dos nossos barcos a singrar e singrar, adiante pelos rios da vida!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Abel, trago nos arredores da minha meia-idade todo o entorno da infância em barras de caramelo, bola de balata, caroço de buriti, semente-olho de guaraná e história pra boi dormir. Tudo isso, se não serve pra nada, diria Manoel de Barros, serve pra poesia. Por isso singramos essa Amazônia desvairada, feito menino do buchão, declamando poesia, como fizeram Rondon e Euclides da Cunha. Outra coisa: volte sempre. Todos comentam que a tua verve é continuação do próximo capítulo. A gente já fica acocorado só na espreita, ou melhor, de mutuca, diria Velasco com suas velas aromáticas.