sábado, 18 de abril de 2015

Entre Guamá e o mosteiro de Santa Luzia, um transplante no meio do caminho

Falamos para nos vermos,
para nos ouvirmos, 
para sermos instante e infinito
Abel Sidney, poeta

Estávamos escorados na sombra do mundo, sob a aba de um Jatobá, quando ouvimos o chamado do tio: abandonar aquela vida interiorana e ganhar a imensidão da capital. Justificou que a infância tinha findado e já era tempo de estudo na cidade grande. Não poderíamos ficar mais ali a ver barquinhos, sabendo desse tio que morava em Belém e que estaria disposto a nos albergar por uns tempos, até tomarmos o próprio rumo e passarmos a ver navios.

Pegamos ônibus de Ji-Paraná até Porto Velho, varando a floresta. Lá amanhecemos, fomos para um hotel de trânsito do Basa, descansamos, almoçamos e depois pegamos um DC-3 até Manaus e pousar em Val-de-Cans, ao anoitecer. Tudo numa cipoada só.

No aeroporto tratamos logo de selar amizade com Juarez, hoje anestesiologista, moço que carregava simplicidade e compaixão de doer o dedo mindinho de Cristo. A partir dali nos apresentou para uma patota do Jardim Ipiranga e tudo virou festa, principalmente quando o assunto era futebol.

Depois dessa primeira turma de amigos, outra que marcou foi a da faculdade de Medicina, de 1982-87, que só acabou quando viajei de vez para o Rio de Janeiro.

Desta fase lembro, ainda no ônibus, a descida no Guamá. No caminho me esbarrava com a Anete (que abandonou o curso), Marília, Julinha e tantos outros que a memória definhou e me passou sarrafo. Junto íamos regando amizades como se regássemos crisântemos. Depois dos dois primeiros anos começamos a frequentar o “mosteiro” de Santa Luzia e a Santa Casa, e a relação ficou mais prazerosa até o sexto ano.

Na biblioteca, em torno da cantina ou nas salas do Matadouro buscávamos a pedra filosofal escondida nos segredos hipocráticos, entre as paredes da faculdade. Max, Zé Pedro, João Carlos, Raynaud, Sergio Lima e Humberto foram meus maiores parceiros de livro, mas sempre que podíamos, entre uma aula e outra, programávamos os feriados - desde que o toc-toc das provas não reverberasse na porta da segunda-feira.

Também colecionamos diversas histórias, como por exemplo, o convívio com o jubilado Fernando Arara, que chegava com aquele violão empenado e uma gaita enferrujada cantando Blowing in the Wind, no mesmo tom e harmonia de Bob Dylan. Ainda tinha o Felipe e o Peruquinha, figuras que destoavam no liceu, mas que carregavam paz no fundo de suas retinas.

Mas o que nos fortificou mesmo foi o final, depois daquela noite no teatro da Paz, quando entoamos “Rosa de Hiroshima” e nos despedimos do Prof. Camilo Viana. Depois vieram reencontros, lembranças das greves, abertura política e “diretas já” com Fafá de Belém, Tancredo Neves e todos cantando “Coração de Estudante” pelas soleiras da Generalíssimo.

Hoje somos cinquentões e 1987 ficou na estrada do sentimento amarrado na cordoalha tendinosa daqueles tempos idos. Alguns ficaram pelo caminho e abandonaram o curso, como o Zeca Pimentel e a Anete, outros foram forçados precocemente a ir pro segundo andar, como a Claudia Abe, Haroldo e o Altair.

Afora as avarias do tempo, estamos muito bem vivos e sempre nos encontrando nos embalos das redes sociais. Neste fim de semana, por exemplo, a Fátima resolveu comemorar seus cinquenta tons de vida e convidou a turma. A presença foi massiva. Alguns vieram de longe, como o Mário Rubens e Socorro “Help” Amoras (SP) e Sued (MG). O outro bando foi daqui mesmo. A Fátima, que dia desses recebeu uma medula óssea por transplante, merecia comemorar com essa turma que, durante o tratamento, fez figa e orava na basílica de Nazaré, para que, com muita fé, ela voltasse a viver e nos encontrar... E voltou... e nos reencontrou.

Vez por outra vou ao velho casarão de Santa Luzia e sempre me vem uma passagem machadiana: “Lá não via ninguém, mas é certo que a sala [de aula] estava cheia de espíritos, repimpados em cadeiras abstratas”.
Labareda, do bando de Corisco

2 comentários:

Unknown disse...

Emocionante Roger. ...
Sem mais palavras!

Ana Cristina Tavares

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Ana, Ana, quanto tempo! Por onde andas, Pequena! És uma dessas personagens dessas andanças entre o Guamá e a faculdade de Medicina. O que fiz foi apenas sobrevoar o passado nas asas da palavra. Volte sempre a este cantinho. Vez por outra vou aninhando o verbo no tempo passado só para jogar a isca e rever todos. Um forte abraço!!!