domingo, 30 de setembro de 2012

O Surrealismo do Iphan


Vila Ceará - Salvaterra, Marajó, 2001: 
panelas de barro sendo feitas por moradores, com a ajuda de Oliva e Mariella. Agora, essas panelas viraram "vasilhames cerâmicos arqueológicos"  para o Iphan. 
Fotos: Oliva Van Eeghem Coutinho

Brasil continua surreal e não adianta a nossa pose de país de primeiro ranking quando as instituições públicas refletem um nível de amadorismo surreal. O que relato aqui está sendo vivido por  minha esposa, Oliva, tendo como protagonista principal uma instituição que nós, até então, considerávamos séria e comprometida com o interesse maior da preservação da memória, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. Em agosto passado, Edinea da Conecição dos Santos, a senhora que se cuida da nossa casa e pousada na vila de Joanes, Marajó, recebeu um comunicado assinado pela superintendente do Iphan no Pará, Maria Dorotéa de Lima. Citando "a legislação maior pertinente à proteção do patrimônio arqueológico, Lei Federal n° 3.924/1961 e a Constituição Federal arts. 23, 215 e 216 cujas cópias seguem em anexo",  a superintende aponta que, durante vistoria realizada pelo Iphan nas ruínas da Vila de Joanes,  identificou na pousada "o uso de vasilhames cerâmicos arqueológicos como utilitários no local". Em seguida, a superintendente do Iphan avisa que, "para coibir tal procedimento", solicita "a retirada deste material de locais de constante circulação de pessoas para não sujeitá-lo a quebras ou aplicações indevidas de uso". E ainda alerta: "a compra e venda de objetos arqueológicos é crime federal e não deve ser praticada ou estimulada. Portanto, orientamos para que ofertas nesse sentidos sejam direcionadas ao Iphan, ou que os objetos sejam doados à centros de pesquisas ou museus, onde serão tratados e identificados, bem como ficarão acessíveis a uma maior quantidade de pessoas". Bem, se doarmos esses três vasilhames para um instituição de pesquisa científica, a conclusão será: artefatos cerâmicos, datados de 2001 AD, da fase belgo-argentina-marajoara  iniciada pela presença de Oliva Van Eeghem Coutinho, belga de origem flamenga, e da argentina Mariella Boschetti, na ilha do Marajó. 

A origem dos vasilhames
Reproduzo aqui, a carta que Oliva enviou na semana passada à "super-intendente" Maria Dorotéa de Lima:
En 2001, eu soube que uma família da Vila Ceará – localidade entre Joanes e a sede do município de Salvaterra – fazia e usava ainda panelas cerâmicas segundo a tradição dos seus antepassados.
Como eu mesma tinha seguido uma formação de ceramista, resolvi contatar esse grupo de moradores. Passei alguns dias, em companhia de uma amiga argentina,  artista plástica e também ceramista,  Mariella Boschetti,junto à comunidade da Vila Ceará. Com a famìlia, fomos ao mangue, buscamos o barro, acompanhamos e a ajudamos na confecção desse tipo de panela que a família ainda usava para cozinhar e também para  preparar a tiborna – água ardente de mandioca. Fizemos fotos e trocamos conhecimentos sobre as técnicas cerâmicas das pessoas da família, e depois de terminar o processo dividimos entre nós as panalas. Assim surgiram o que Vossa Senhoria identifica como  “vasilhames cerâmicos arqueológicos”. Eu mesma  nunca me arrisquei a utilizar as panelas para cozinhar algo porque vi que não resultaram fortes. Preferi  utilizá-las para depósito de guarda-chuvas molhados e sinalização de um desnível no chão, como peça decorativa e como vasilha de lixo de mesa. Em anexo,  envio  as poucas fotos que guardei  do trabalho coletivo com a família  da Vila Ceará, em 2001.
 
Na carta, Oliva ainda escreve:
O ofício de Vossa Senhoria nos causou espanto absoluto porque:
1) não é de agora que  Vossa Senhoria a e os técnicos do Iphan vão à Joanes  e passam pela Pousada. Lembro das primeiras escavações da fase mais recente  do Projeto de preservação do sítio arqueológico, que documentei com fotos em fevereiro de 2006. E eu garanto: esses vasilhames estavam lá então,  nos mesmos locais que Vossa Senhoria os viu somente em julho deste ano; 2)  Vossa Senhoria nos conhece e com certeza deve se lembrar da luta que  nós travamos em Joanes pela preservação do Patrimônio Histórico – embate  esse que nos causou situações de confronto com as forças mais obscuras da Vila e que,  em determinados momentos nos colocou em risco de integridade física tanto a mim quanto  ao meu marido, Edvan Coutinho, então presidente da Associação de Moradores de Joanes entre 2005 e 2007.  Eu poderia entrar num embate  com o Iphan sobre esses vasilhames.  Poderia pedir um laudo técnico que esclarecesse a origem,  datação e fase arqueológica
a qual pertencem.  Mas, não o farei porque acho que seria desperdício de tempo e dinheiro público.
Faço, então, o relato sobre a origem dos “vasilhames cerâmicos arqueológicos”,
relato este que, se Vossa senhoria tivesse nos contatado,  antes da comunicação enviada, ouviria e assim poderia evitar o constrangimento atual que, lamento, coloca em dúvida a competência técnica do Iphan, representado, infelizmente, por Vossa Senhoria.


Lembrei-me do personagem de Jô Soares, Sebastião, o último exilado, que telefonava da França no final dos anos 70  e ouvia da mulher, Madalena, relatos surreais do Brasil dos tempos da Abertura e dizia, incrédulo: "Madá, tu não queres que eu volte!!! Chose de loc!!!"


4 comentários:

Scylla Lage Neto disse...

Edvan, a situação parece ter extrapolado o surreal.
Trata-se de uma alucinação complexa, coletiva e publicada em diário oficial!
Sem palavras.
Abs.

Edvan Feitosa Coutinho disse...

Scylla, e tudo isso com o nosso suado dinheiro dos impostos. Uma pena. Abraços.

André Costa Nunes disse...

Caríssimo Edvan,
Este episódio está mais para o Febeapa – Festival de Besteiras que Assola o País, criado pelo saudoso Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, e que pensamos havia acabado com o fim da ditadura. Pelo menos com a chancela oficial. Mas em que pese a gravidade do caso, embora risível, meu interesse é, no momento, bem mais prosaico: tenho um restaurante rural que só cozinha e serve pratos regionais em panela de barro. Tenho que importá-las de São Paulo, pois as de Icoaraci são meramente decorativas. E te pergunto, as panelas dee Joanes, milenares, ou não, agüentam cozinhar uma caldeirada de filhote ou uma galinha caipira? Se sim, companheiro, me aguarde. Só estava querendo um motivo, por menor que fosse para voltar a Joanes. Desembarcarei, nirvanamente, eu e minha garrafa de jamburana. Se houver panela, muito que bem, se não, Joanes me basta.

Edvan Feitosa Coutinho disse...

Caro André, acredito que as panelas feitas na Vila Ceará podem sim aguentar fogo.
Não essas feitas por Oliva e que geraram essa gafe do Iphan.
Mas lá na vila, eles utilizavam esse tipo de panela para fazer tiborna. O que a gente não sabe é se o pessoal ainda faz as panelas. Nosso contato foi em 2001 e depois disso não sabemos se eles ainda fazem. Isso já é uma boa razão para ir a Joanes e conhecer a Ventania. www.pousadaventania.com
Um abraço.