quarta-feira, 30 de abril de 2008

Aprendiz da Agonia

Espere um instante, deixe-me encher o copo. Quer chupar a rodela de laranja e cuspi-la a seguir no cinzeiro, idêntica a uma fatia baça e seca de sol de outubro, chupar a laranja, de olhos baixos, para se poupar a si mesma o espectáculo derisório da minha comoção, comoção de bêbedo, às duas da manhã, quando os corpos se principiam a deslocar como limpa-pára-brisas, o bar é um Titanic que nafraga e as bocas caladas entoam hinos sem som, abrindo-se e fechanco-se à laia dos beiços tumecfatos dos peixes? Há qualquer coisa, sabe como é, de galeão espanhol submerso nesta sala, povoado de cadáveres à deriva da tripulação que uma claridade sublunar diagonalmente ilumina, cadáveres que flutuam sem aderir as cadeiras, entre duas águas, a ondulares os braços sem ossos num vagar de limos. Até os empregados se tornam demorados, sonolentos, criando raízes no balcão à maneira de corais estupefactos que o barman estimula por vezes ao dar-lhes a cheirar o frasco de sais de uma aguardente de pêra, salvando-os dessa forma de um coma vegetal. E aqui estamos nós, afogados também, franzindo de tempos a tempos as vieiras das pálpebras, polvos de aquário borbulhando palavras que a música de fundo dissolve num murmúrio em surdina de maré, você a escutar-me com a tranquila paciência das estátuas (que língua falariam as estátuas, se falassem, que frases se segredam à noite no silêncio oco, de sarcófago com escarradores, dos museus?), você a escutar-me, dizia, e eu contando-lhe da chamada ao rádio para ouvir de Gago Coutinho, palavra a palavra, a notícia do nascimento da minha filha, agarrado às costas da cadeira do cabo de transmissões e a pensar Vai-me dar uma camueca e estou fodido.
Trecho magistral do romance Os cus de Judas (Editora Alfaguara. Rio de Janeiro,1979), escrito por Antònio Lobo Antunes, considerado um mestre da literatura portuguêsa contemporânea. O livro é a narrativa das aventuras de um médico português depois de voltar da guerra da independência de Angola, que o faz de forma densa e inovadora como tragédia irrecuperável para os povos que dela participaram. Lobo Antunes (66 anos), que tem costados paraenses de partes do avô paterno, é médico de formação, com especialização em psiquiatria. Sua família e as tradições paraenses que lhe acompanharam na infância, ele as narra no livro Memória de Elefante, disponível em edição brasileira. Em 2007, recebeu o Prêmio Camões, considerado uma das maiores honrarias da literatura em língua portuguesa.

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